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A arbitrabilidade das sanções contratuais administrativas: uma proposta de critérios de avaliação

O art. 1º, caput, da Lei n. 9.307/96, indicou como partes legítimas de procedimento arbitral quaisquer pessoas capazes de contratar (critério de arbitrabilidade subjetiva) e definiu como passíveis de arbitragem os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis (critério de arbitrabilidade objetiva).

Ora, se o Poder Público celebra contratos, haveria dúvidas sobre a viabilidade de figurar em procedimentos dessa natureza?

Até recentemente, houve. Os questionamentos residiam principalmente na admissão de quaisquer dos “direitos” da Administração como disponíveis. Afinal, isso aparentemente manifestaria violação frontal aos princípios da supremacia e indisponibilidade do interesse público .

Entretanto, com o advento da autorização legal de participação da Administração em arbitragens (§1º, art. 1º, da Lei nº 9.307/1996, incluído pela Lei nº 13.129/2015), e com a progressiva flexibilização da interpretação outrora dada à “indisponibilidade” (especialmente pelo artigo 26 da LINDB, incluído pela Lei nº 13.655/2018), os questionamentos existentes foram paulatinamente perdendo força e o Poder Público tem se valido mais e mais da arbitragem.

Contudo, apesar de dissolvida a polêmica com relação à arbitrabilidade subjetiva, ainda são muitos os questionamentos sobre ao escopo da arbitrabilidade objetiva dos litígios envolvendo a Administração.

Isto decorre sobretudo da dificuldade de distinção entre questões ínsitas à ordem pública e ao poder de império (logo indisponíveis) e questões meramente negociais – ou ao menos negociáveis.
Afinal, quais dos “direitos” da Administração e dos particulares (contratados por esta) efetivamente possuem caráter patrimonial e são disponíveis?

A questão não é nada simples, porém sua reflexão à luz de um determinado grupo de litígios possivelmente facilite uma resolução. Um caso particularmente interessante nesse sentido é o das sanções contratuais administrativas, ou seja, das sanções aplicáveis apenas em função de previsão em contrato administrativo e não decorrentes do Poder de Polícia .

Por um lado, poderia se compreender que tais medidas representam faceta do jus puniendi estatal, tema sobre o qual árbitro algum poderia se imiscuir – especialmente considerando os objetivos de repressão de condutas ilícitas, defesa da ordem e da legalidade, garantia da isonomia entre os “administrados” etc . Noutra mão, dada a natureza de muitas das sanções aplicáveis nesse contexto (algumas delas estritamente pecuniárias), haveria de fato impedimento a juízo por corte arbitral? Especialmente, considerando relação contratual que se estenda por meses ou anos, seria realmente preponderante a função retributiva dessas medidas? Ou possuirão caráter mais propriamente regulatório, ordenador?

Deveras, essas questões exigem tratamento mais minucioso: é preciso refletir se existe subsunção da aplicação de sanções contratuais administrativas (e o direito de defesa) ao critério de arbitrabilidade objetiva (direitos patrimoniais disponíveis).

 

  • Quais os “direitos” em jogo? E por que dependeriam da arbitragem?

Primeiro, deve-se observar que o sancionamento de conduta ilícitas é mais que uma prerrogativa estatal, trata-se de poder-dever cuja aplicação, até ponderação em sentido contrário, é mandatória – inclusive sendo dotada de autoexecutoriedade. De todo modo, inegável que se trate grosso modo de um “direito” da Administração, isto é, uma potência garantida pelo ordenamento jurídico.
Já sob o prisma do contratado, o direito vislumbrado é o de defesa. Este, por força de norma constitucional (art. 5º, inc. LV), também é garantido desde o processo administrativo. Logo, inegável o caráter de direito.

Ora, haveria então o interesse de agir? O que justificaria a instauração de procedimento arbitral?

A esse respeito, vale recordar que o STJ já reconheceu que o exercício do poder de polícia e a executoriedade dos atos administrativos não retira da Administração Pública o interesse de provocar o Poder Judiciário em busca de provimento jurisdicional .

Ainda, uma vez que a aplicabilidade das sanções contratuais administrativas decorreria de sujeição especial (abraçada a partir de pacto voluntariamente firmado entre o Poder Público e o agente privado) seria igualmente admissível determinar-se em cláusula a necessidade de prévio procedimento arbitral (ao invés de processo administrativo) para adequada apuração dos fatos e verificação da sanção compatível.

Nesse diapasão, poder-se-ia justificar a arbitrabilidade objetiva pela necessidade de celeridade ou aprofundamento técnico-probatório – desde que isso fosse demonstradamente inviável por meio de processo administrativo.

A referida preocupação se verifica no art. 6º do Decreto nº 10.025/2019 (que regulamenta a arbitragem envolvendo a Administração Pública Federal nos setores portuário e de transporte rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário):

Art. 6º. Na hipótese de ausência de cláusula compromissória, a administração pública federal, para decidir sobre a celebração do compromisso arbitral, avaliará previamente as vantagens e as desvantagens da arbitragem no caso concreto. § 1º Será dada preferência à arbitragem: I – nas hipóteses em que a divergência esteja fundamentada em aspectos eminentemente técnicos; e II – sempre que a demora na solução definitiva do litígio possa: a) gerar prejuízo à prestação adequada do serviço ou à operação da infraestrutura; ou b) inibir investimentos considerados prioritários.

Em suma, tanto do ponto de vista material, quanto processual, parece razoável falar-se em direitos e reconhecer a existência de razões para o seu arbitramento.

 

  • Há “direitos patrimoniais” em jogo?

Quanto ao caráter patrimonial, é preciso prontamente observar que as sanções administrativas contratuais se subdividem em variadas espécies, algumas de natureza pecuniária, como as multas (conforme prevê o art. 156, inciso II, da Lei n. 14.133/2021) e outras de natureza não pecuniária, como por exemplo o impedimento de licitar ou contratar com a Administração (art. 156, inciso III, da Lei nº 14.133/2021).

Isto posto, é importante observar o que expressa TALAMINI acerca da patrimonialidade dos direitos:

“O requisito da patrimonialidade põe-se em termos bastante amplos e flexíveis. O interesse tem caráter patrimonial não apenas quando seu objeto diretamente se reveste de valor econômico. A patrimonialidade também se configura pela aptidão de o inadimplemento ser reparado, compensado ou neutralizado por medidas com conteúdo econômico.” (Destaques nossos)

Assim, é razoável compreender que para a admissão por juízo arbitral seria necessária a demonstração, ou do conteúdo econômico do direito, ou da viabilidade de reparação por medidas dotadas de conteúdo econômico .
É fácil observar a patrimonialidade nas sanções pecuniárias, porém, salvo o caso da advertência (art. 156, inc. I, da Lei nº 14.133/2021), não é difícil reconhecê-la nas demais hipóteses expressas na NLLC, nem nas constantes de outras diplomas, como a Lei de Concessões. Ora, não haverá conteúdo econômico palpável em declaração de caducidade? Qual será a repercussão financeira dessa medida à concessionária? Parece perfeitamente palpável, ainda que não facilmente liquidável.

Em tempo, faz-se relevante a reflexão relativa à patrimonialidade sob o ponto de vista processual. Afinal, dados recursos financeiros e humanos exigidos pelos procedimentos arbitrais, não seria admissível, em respeito ao princípio constitucional da eficiência administrativa (art. 37, caput), promover procedimento arbitral a tratar de direitos sem conteúdo econômico perceptível, sendo em regra suficiente o processo administrativo para tanto.

 

  • Há “direitos patrimoniais disponíveis” em jogo?

Por fim, parece perfeitamente viável dizer que muitas sanções administrativas são disponíveis (ainda que por vezes apenas com relação à dosimetria).

A evidência disso se verifica na ampla gama de resoluções consensuais a processos administrativos sancionatórios: desde autuações ambientais e de trânsito dirigidas cotidianamente aos cidadãos, até em casos de grande repercussão, envolvendo conglomerados empresariais.

Ainda mais clamorosos são os casos (mesmo raros) de perdão das sanções, como previsto, por exemplo, no art. 4º da Lei 13.281/2016 , o qual possibilitou “anistia” das sanções estabelecidas no CTB (art. 253-A) a grupo de caminhoneiros por manifestações realizadas em 09/11/2015.

Justamente por essa espécie de reflexão que autores como SANTOS e MONEGALHA fixam como critério para submissão à arbitragem a negociabilidade de determinado direito (reflexo da disponibilidade). Justificam:

“As sanções administrativas previstas na Lei nº 8.666/1993 (Lei de Licitação) são aplicáveis a qualquer parte que celebre contrato com a Administração Pública. Isso não impede que as sanções sejam remediadas no caso concreto. As partes podem discutir e negociar a aplicação de multas, substituí-las por uma advertência, entre outras. Neste exemplo, a despeito de sua origem heterônoma, constata-se que a sanção administrativa admite certo grau de negociabilidade, o que faz atrair a sua arbitrabilidade.” (Destaques nossos)

Com efeito, verifica-se que o Direito Positivo não está distante do raciocínio até aqui firmado.

O Decreto n. 10.025/2019 possui manifestação particularmente incisiva sobre o tema, explicitamente abarcando “penalidades e o seu cálculo” decorrentes de “inadimplemento de obrigações contratuais” em geral. Vide:

“Art. 2º – Poderão ser submetidas à arbitragem as controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis.
Parágrafo único. Para fins do disposto neste Decreto, consideram-se controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis, entre outras:
III – o inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes, incluídas a incidência das suas penalidades e o seu cálculo.” (Destaques nossos)”

 

  • Proposições conclusivas

Materialmente, é inegável existirem direitos (da Administração e seus contratados) envolvidos na aplicação de sanções contratuais, sendo igualmente clara a patrimonialidade de muitos destes direitos (seja pelo conteúdo econômico do direito, seja da viabilidade de reparação por medidas dotadas de conteúdo econômico). Ainda, com relação à disponibilidade é fundamental meditar-se à luz da negociabilidade da potestade caso a caso, considerando os interesses em jogo e o impacto na gestão de determinada política pública.

Já do ponto de vista formal-procedimental alguns cuidados merecem destaque: a) previsão em cláusula compromissória, preferencialmente explicitando opção por prévio procedimento arbitral em determinados casos e o escopo deste (juízo de fato? Juízo de direito? Dosimetria? etc.); b) Ponderação (e motivação) acerca da necessidade de celeridade e de aprofundamento técnico-probatório viáveis pela arbitragem; c) Ponderação (e motivação) acerca da proporcionalidade de procedimento arbitral (dado o alto dispêndio recursos financeiros e humanos) ao conteúdo econômico dos direitos objeto do litígio.

Esses critérios poderão servir (sob prisma material e formal-procedimental) a melhor reflexão dos administradores quando modelarem as cláusulas compromissórias, bem como aos árbitros quando tiverem de decidir acerca de sua competência para julgamento.

(texto originalmente publicado no Portal CONJUR: https://www.conjur.com.br/2024-jan-16/arbitrabilidade-das-sancoes-contratuais-administrativas-proposta-de-criterios-de-avaliacao/)

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