Vivemos uma transformação estrutural nas relações comerciais. A chamada economia colaborativa (ou compartilhada) já é realidade e remodela as formas de consumo e prestação de serviços.
Nesse novo cenário, ganha força o modelo P2P – peer to peer, ou, em tradução livre, “de pessoa para pessoa”. Nele, consumidores e fornecedores se conectam diretamente por meio de plataformas digitais, normalmente acessadas por sites ou aplicativos. E é justamente o papel dessas plataformas, enquanto intermediadoras dessa relação, que tem gerado intensos debates no campo do Direito.
A principal pergunta é: qual é a responsabilidade civil dessas plataformas quando ocorre algum problema na relação entre consumidor e fornecedor?
A tríade do consumo digital
Nessa nova dinâmica de consumo, três agentes estão presentes:
O consumidor;
O fornecedor (que nem sempre é uma empresa tradicional ou estruturada);
E a plataforma digital, que atua como ponte entre as partes.
A função da plataforma vai além de um mero quadro de anúncios. Muitas vezes, ela define regras de pagamento, controla a experiência do usuário e oferece mecanismos de segurança, como verificação de identidade, sistemas de reputação, moderação de conteúdo e suporte ao cliente.
Mas essa atuação gera responsabilidade jurídica? A resposta, como veremos, depende do grau de envolvimento da plataforma na relação de consumo.
Duas visões distintas no Judiciário
Há duas correntes principais sobre o tema:
1. Responsabilidade solidária da plataforma: quando ela integra a cadeia de consumo
Uma parte da jurisprudência entende que, ao exercer controle relevante sobre a dinâmica do negócio, a plataforma passa a fazer parte da cadeia de fornecimento prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Isso ocorre quando a plataforma:
Atua de forma profissional e com habitualidade;
Define regras e estrutura a relação entre as partes;
Inspira confiança no consumidor;
Lucra diretamente com a intermediação.
Nessas situações, aplica-se a regra do CDC que impõe responsabilidade solidária aos fornecedores de um mesmo serviço ou produto (art. 7º, parágrafo único). Essa foi a posição adotada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) ao julgar a Apelação Cível nº 1005022-52.2018.8.26.0079, envolvendo a plataforma de comércio eletrônico Mercado Livre.
O Tribunal reconheceu a responsabilidade da plataforma mesmo sem ela ser proprietária do produto. Justificou que sua atuação foi essencial para a concretização do negócio e que sua remuneração e estrutura conferem a ela a posição de fornecedora nos termos do CDC.
2. Exclusão de responsabilidade: quando a plataforma atua apenas como intermediadora
Por outro lado, há decisões que excluem a responsabilidade da plataforma, especialmente quando ela:
Não exerce controle sobre os produtos ou serviços;
Não participa da negociação;
Apenas disponibiliza o espaço virtual para anúncios.
Nesses casos, a empresa é vista como uma prestadora de serviço de disponibilização de tecnologia – uma “vitrine digital”. É o entendimento adotado pelo TJSP no julgamento da Apelação Cível nº 1001183-36.2014.8.26.0248, também envolvendo o Mercado Livre.
Segundo essa corrente, a responsabilidade pelos danos é exclusiva do fornecedor direto. A plataforma apenas conecta as partes, não sendo responsável por fraudes, vícios ou problemas na entrega do produto, salvo se descumprir seus próprios deveres contratuais ou legais.
Marco Civil da Internet e o papel do provedor de aplicações
A interpretação que afasta a responsabilidade da plataforma encontra respaldo no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), especialmente no art. 19, que estabelece que provedores de aplicações só respondem por conteúdo de terceiros se houver descumprimento de ordem judicial para retirada do conteúdo infrator.
Assim, a responsabilidade da plataforma se vincula à sua conduta, e não à simples hospedagem de anúncios ou intermediação entre usuários.
Qual o caminho mais seguro?
Como se observa, não há uma resposta única. A responsabilização da plataforma deve considerar o modelo de negócio, o grau de interferência na relação de consumo e a confiança gerada no consumidor.
É possível dizer que:
Quanto maior a intervenção e controle da plataforma, maior a sua responsabilidade;
Quanto maior a autonomia entre fornecedor e consumidor, menor será a responsabilização da empresa de tecnologia.
Nesse ponto, destaca-se o ensinamento do jurista Rui Stoco: quando o provedor atua apenas como canal neutro de comunicação, sem produzir ou moderar conteúdo, não há fundamento para sua responsabilização.
Conclusão
As plataformas digitais têm funções e estruturas diversas. Em alguns casos, assemelham-se a marketplaces robustos, com regras próprias e intermediação ativa. Em outros, operam como simples classificados eletrônicos.
Por isso, a análise da responsabilidade civil dessas empresas exige um olhar atento sobre a realidade prática de suas atividades e o nível de confiança gerado no consumidor. A boa-fé objetiva e a expectativa legítima são critérios jurídicos relevantes nessa avaliação.
A equipe do nosso escritório acompanha de perto essa evolução jurídica e está à disposição para orientar empresas, plataformas digitais, fornecedores e consumidores sobre os riscos, deveres e responsabilidades no ambiente digital.
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